sábado, 31 de março de 2012

#14 MITCHELL, Margaret - E Tudo o Vento Levou

Scarlett & Rhett

«- Não te insulto. Estou até a louvar a tua virtude física. Mas, enfim, não me tomes por um imbecil, como é teu costume julgar os homens... É mau menosprezar a força ou a inteligência dos adversários. Eu não sou imbecil. Ouve: quando estavas nos meus braços, eu bem sei que pensavas em Ashley Wilkes (...) Não desconfiaste disto?
Scarlett mostrava claramente no rosto a estupefacção que a tomara.
- É pândego, hem? Até parece uma história de fantasmas. Três pessoas na mesma cama... quando só deviam estar duas. - Sacudiu-a pelos ombros, teve um soluço e sorriu - Ah, sim, ficaste fiel porque Ashley não te quis! Caramba! Eu não iria disputar-lhe o teu corpo (...) Mas o que não lhe quero ceder é o teu coração e o teu espírito pouco escrupuloso. Posso ter todas as mulheres que desejar. Insisto, porém, em guardar a tua alma e o teu coração, coisas que jamais cederei. É como a alma de Ashley, que tu também não conseguiste. Eis a razão por que me causas dó.
- Dó... de mim?
- Sim, porque és uma criança. Uma criança que chora a pedir a Lua. Que faria ela da Lua, se lha dessem? Causa-me pena ver-te deitar a felicidade pela janela fora, só porque pretendes outra coisa... que não te fará feliz. Causa-me pena porque és insensata. Ignoras que não há felicidade fora de dois seres que foram feitos um para o outro. Se eu morresse, se Melanie morresse e ficasses enfim com o teu precioso apaixonado só para ti, julgas que te sentirias feliz com ele? Pois enganas-te! Nunca chegarias a conhecê-lo, não saberias nunca o que ele pensava e não o entenderias como não entendes música, poesia, literatura e tudo o que não tem relação com dólares e cêntimos. Ao passo que nós, esposa do meu coração, podíamos ser perfeitamente felizes se quisesses dar-nos essa oportunidade, porque somos muito semelhantes. Ambos somos uns crápulas, e nada nos detém quando se nos mete alguma coisa na cabeça. Podíamos ter sido felizes, porque te amava e porque te conhecia, Scarlett, como jamais Ashley te conhecerá. E teria o maior desprezo por ti, se conhecesse... Mas não, hás-de passar a vida a suspirar por um homem que não compreendes. E eu, minha jóia, continuarei a consolar-me com meretrizes. E sou capaz de jurar que nos entendemos melhor do que a maioria dos casais.»


Margaret Mitchell, E Tudo o Vento Levou (1936, Pulitzer Prize)

Sinopse: (Pela primeira vez neste blogue, fá-la-ei eu) Scarlett O'Hara tem mau feitio. É ambiciosa, calculista, mesquinha se for preciso. É cínica, egoísta e mimada. Não olha a meios para atingir os seus fins e, o único fim que está fora do seu alcance é o amor de Ashley Wilkes. Ashley é bem o oposto de Scarlett: conservador, moralista, é correcto em todas as suas acções. Acredita na Causa do Sul e vai combater contra o Norte abolicionista. A história é quase toda passada em Atlanta, onde as famílias do Sul se refazem da Guerra de Secessão e dão novos rumos às suas vidas, agora tão desfazadas das que sempre tinham conhecido... E é neste cenário de mudança que Scarlett conhece Rhett, um céptico igualmente egoísta e cínico que também não olha a meios para atingir fins. Rhett Buttler tem uma reputação péssima, está excluído de praticamente todos os círculos da sociedade mas é inteligente, oportunista e vivido. Do modo mais humano, melhor intrincado que alguma vez li ou percepcionei na arte, a relação dos dois desenvolve-se com nuances, altos e baixos, e com a obstinação de Scarlett por Ashley e o orgulho de Rhett a meterem-se constantemente pelo meio.

Opinião: Sem dúvida, o melhor livro que li. Tenho plena consciência de que jamais voltará a ser escrita uma obra como esta. A complexidade, o rigor histórico, a profundidade humana das personagens - com os seus erros, as suas vulnerabilidades, os seus egoísmos expostos a nu, as suas más intenções, os seus medos e pequenas conquistas. Ri, aprendi algumas lições e chorei. Confrontei-me assim com a realidade dos negros do Sul muito ligado a explorações de algodão, pobre em indústria. Fiquei assim a saber que a perspectiva abolicionista não estava assim tão carregada de boas intenções - pelo contrário, precisavam dos negros como aliados contra o Sul. Fiquei assim a conhecer aquela que pode ser descrita como a mulher mais detestável de todos os tempos, esta Scarlett O'Hara de olhos verdes e sorriso insinuante. Fiquei a conhecer uma mulher dócil, dada a perdoar, que no entanto não é tola - Melanie Wilkes. Fiquei a conhecer um homem profundamente apegado às suas raízes e à tradição do estado que muito ama, e que está assim disposto a dar a vida por uma guerra que, no seu íntimo, sabe que vai perder. Fiquei assim a conhecer um homem que me ensinou inúmeras lições sobre a natureza humana - Rhett Buttler, que não dá um chavo por causas perdidas. O país que se afunde: ele não se deixará afundar com ele. Tira o partido que puder das situações. Não tem reputação e sabe que aquele que não a tem é o homem mais livre entre os homens livres. Não deve nada a ninguém. Ninguém espera nada dele. 

Livro algum pode ser posto ao lado deste, ligeiramente aproximado a ele que seja, sem ser fortemente ridicularizado. Ficam todos abaixo, em triângulo, e o E Tudo o Vento Levou acima deles. A genialidade óbvia de uma mulher do início do século XX que mal sonhava com a repercurssão épica da sua grandiosa obra... Pena que seja o único. Brilhante, Mrs Mitchell. Adoro o universo que criou.

Classificação: 10********** em 5

1 comentário:

  1. Tenho este livro em casa para ler nesta edição. Sempre que penso em lê-lo dá-me a preguiça...lol

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