terça-feira, 4 de junho de 2013

#87 MAUGHAM, Somerset, Servidão Humana


Quer queiramos quer não, um livro está impregnado do espírito do autor. Não significa que traduza tudo o que ele é nem todas as suas crenças; o autor pode, inclusive, ter-se esforçado por explorar temas que lhe são desconhecidos e adoptar posturas que condena. Neste “Servidão Humana” descobri a grandeza da simplicidade. Eu desconfiava da sua existência, mas jamais a vira em tamanha graça e glória. É uma obra grandiosa na sua simplicidade. Não é sobre grandes vitórias, não é sobre um grande aventureiro, sobre bravura, sobre perfeição incompreendida ou sobre uma vida madrasta. É sobre os caminhos escolhidos, as consequências que aí advém e os diversos prismas pelos quais é possível encarar-se a situação. Phillip Carey tem pé boto, é órfão acolhido pelos tios e cresce no puritanismo do Kent de finais do século XIX. Já crescido, passa a desprezar a languidez do tio, a sua inércia e o seu egoísmo, assim como ora se comove ora se exaspera com a lamechice exacerbada da tia. Deus é um amigo, uma verdade inabalável até certo ponto. Ao desistir, contudo, da carreira eclesiástica, vai estudar para a Alemanha e depara-se com o protestantismo. Também um budista e um católico dividem o mesmo espaço consigo e todos, a par dele que é anglicano, parecem ver a verdade apenas na sua religião. Isso e a sua falta de insolência ou vaidade levam-no a concluir que a religião é, sobretudo, uma questão de geografia. Como ele próprio diz, teria grandes chances de ser protestante se tivesse nascido na Alemanha, ou católico se tivesse nascido em Itália. Isso significa que, por não ser crente na fé anglicana, estaria condenado às chamas do Inferno? É aqui a primeira grande viragem da sua vida. Deus já não comanda a sua vida; o bem e o mal advêm da sua percepção, as escolhas emergem duma mentalidade jovem no início de um século em que a própria sociedade, a economia, a tecnologia, a medicina, o mundo, todo o resto se encontram em ebulição e em franca mudança. Phillip é muito distinto, convencido que está de que é um cavalheiro. As dezenas de personagens – todas elas fortíssimas e indispensáveis – vêm baralhar-lhe as convicções de si próprio. Perante um rico é um burguês patético. Perante um pescador é quase um aristocrata. Embora não seja da sua natureza ser snob – porque também ele é duramente maltratado pela sua condição física e escassez de recursos – discrimina involuntariamente várias vezes. É generoso, mas discreto, tímido e cobarde. Essa sua tendência em pregar-se a uma personalidade mais forte levam-no a tornar-se a sombra dos amigos na escola, na arte, na quase totalidade da sua existência. Ele vai-se dando conta disso, mas não confia no seu próprio juízo. Também isto é uma lição importante a assimilar.
E depois há a Mildred, claro. O papel que, no filme de 1934, impulsionou Bette Davis para o sucesso. Feia, vulgar, snob, miserável, interesseira, estúpida e leviana. Uma simples criada que o humilha num primeiro momento e perante quem Phillip terá sempre tendência a deixar-se perder. Deixa que ela faça dele o que quer, desbarata a sua herança com ela, deixa-o traí-lo de todas as formas possíveis e volta sempre a estender-lhe a mão quando ela regressa, por sua vez desdenhada por um homem mais esperto, que a vê como aquilo que ela é. Que personagem perturbadora, esta Mildred, com a sua decadência moral, as suas mentiras, os seus falsos ares de senhora, os seus queixumes, amuos, sorrisinhos e seduções fáceis, a sua gratidão fingida e momentânea, os seus clarões de fragilidade, o seu desinteresse por qualquer assunto que não entretenimento – jantares, teatro, passeios -, a sua ignorância, “istudante”, a sua fúria sempre prestes a dar azo a outra discussão. Os seus amores assolapados, rápidos a vir e a partir, dando lugar a ódios exacerbados. E Phillip, seu bom “amigo”, a patrocinar-lhe férias com o seu melhor amigo, a cobri-la de chapéus e vestidos, a sustentar-lhe a filha de outro. E depois vem a pobreza extrema, para ensiná-lo a valorizar o trabalho e a ver a vida no seu estado mais dificultado.
Amor, dinheiro, falta de trabalho. Acompanhando o crescimento de Phillip, a sua maturação, surgem assim, por ordem cronológica, os três motivos pelos quais as pessoas parecem dispostas a suicidar-se. E ele, ponderando fazê-lo por cada uma delas, vai-se obrigando a prosseguir. Os tempos são outros. O que é crucial na vida, afinal? Assumindo que esta não tem propósito, ficamos assim perante o seu único sentido; a ausência de nexo. Sem um deus que o guarde, Phillip está por si próprio. A sonhar, a cometer erros atrás de erros, a almejar para si uma felicidade que parece estar sempre ao lado daquilo para que ele se precipita. E então, numa conclusão brilhante, pueril, verdadeira (sobre a qual eu própria discursei bastante durante os meus tempos de faculdade), parece despertar para aquilo que, na vida, se pode extrair de mais doce.
Aconselho vivamente a quem quer que queira experienciar os grandes sobressaltos da existência de qualquer um dos nove aos trinta anos deste Phillip. Tratanto-se de uma autobiografia ficcionada do próprio autor, posso apenas dizer que, como Phillip ou como Somerset, Maugham é um espírito admirável.

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